Saber a Escola - continuação

3.1.3 Saberes Alternativos ou não oficiais

É importante porém reconhecer que certos saberes podem ser originados fora da instituição sem se constituírem em saberes populares ou passageiros. Homeopatia, psicanálise e a medicina alternativa à base de ervas ilustram esta possibilidade. Com freqüência os pioneiros dos saberes não oficiais são indivíduos que foram educados ou receberam instrução em instituições oficiais, porém a sua lógica ou linha de raciocínio resistiu à doutrina vigente na Escola. Às vezes, estes saberes que podem ser chamados de alternativos, irão, no futuro, constituir-se em um novo discurso científico. Tais saberes não são alérgicos a certas modalidades de institucionalização e ajudam no processo de desenvolver um novo tipo de conhecimento.

A Homeopatia e a Psicanálise apresentam fatores comuns. Ambas se organizaram em um tipo alternativo de Sociedade ou Escola e seus fundadores foram alunos formados no interior de instituições acadêmicas.
A Homeopatia foi originalmente proposta pelo médico alemão Samuel Hahnemann em 1796, baseada no principio de que as doenças podem ser curadas por drogas que produzem na pessoa sadia os mesmos efeitos patológicos que fazem parte dos sintomas da doença. Os homeopatas acreditam que com pequenas doses delas o resultado é mais eficaz do que o obtido com grandes doses. Mesmo adotando uma metodologia intuitiva, a homeopatia não se revelou um saber passageiro e fez progredir o conhecimento sobre as reações imunológicas do organismo.

A Psicanálise também se constituiu em oposição às instituições acadêmicas. Ela teve desde o início um aspecto renovador. A procura da origem psíquica de sintomas corporais, tais como as paralisias histéricas, produziu uma prática que terminou por descentralizar a relação médico/paciente do modelo convencional que caracterizava a Psiquiatria no final do Sec XIX. Ao adotar a talking cure Freud afastou-se da neurologia e estabeleceu uma nova abordagem em relação à doença mental, na qual o vínculo entre a doença e o meio ambiente adquiriu uma relevância maior do os fatores puramente biológicos. A repercussão desta nova metodologia propiciou um outra concepção do funcionamento psíquico, aprofundou o estudo das emoções, reinterpretou a natureza das relações humanas e veio dar um novo impulso ao estudo da lingüística.

O caso da medicina à base de ervas é curioso. Durante grande parte da História da Medicina fez parte do conhecimento oficial. Durante o Império Romano, foi sistematizada por Galeno (129-199?) e, no período Otomano, revisada por Avicena (980-1037). A partir da bioquímica moderna e do desenvolvimento da farmacologia, caiu em desuso. Recentemente, tomou um novo impulso como forma de evitar os efeitos iatrogênicos produzidos pela medicina convencional. Gradualmente, a Medicina Alternativa foi absorvida pelo sistema capitalista. As ervas medicinais vem sendo exploradas no sentido de oferecer uma medicação mais barata, com poucos efeitos colaterais e que pode ser utilizada sem a necessidade da consulta médica. A Herbal Life Co. exemplifica o modelo organizacional deste saber alternativo.

A definição e a classificação destes saberes é importante para a discussão lógica da questão da delimitação, do alcance e da função da Escola. Desenvolvida a partir de um contexto social essencialmente seletivo, a Escola abole necessariamente áreas de produção do saber. É eficaz em seu campo específico, mas existem saberes sobre os quais ela pouco ou nada sabe. Com freqüência, a produção de um novo conhecimento ocorre nesta tangente entre a afirmação do saber oficial e a resistência oferecida por um saber não oficial. Portanto, a Escola ideal deve ser suficientemente afirmada para aceitar outras formas de saber, suficientemente delimitada para estimular a paixão daqueles que resistem e suficientemente generosa para dar-lhes oportunidade de existência através do exercício do pensamento, do uso de uma nova linguagem e pelo incentivo de bolsas de estudo.

No caso de fornecimento de bolsas no exterior, por exemplo, seria importante reconhecer a necessidade de conceder bolsas para candidatos que não fazem parte de Instituições Oficiais, sejam elas estaduais ou federais. Estes pré-requisitos se constituem na base da expansão do saber e da formação de conhecimentos múltiplos. (plurilogos).

As instituições de fomento ao saber devem analisar seriamente as condições adotadas pela diferentes escolas no sentido de melhor direcionar recursos para a produção do conhecimento. A função de toda a Escola não é apenas a de transmitir o saber, mas, principalmente, a de produzir o saber. Mais ainda, a epistêmiogênese não deveria ser, necessariamente, um fenômeno tangencial ao ensino oferecido. Deveria fazer parte do funcionamento normal da Escola.

Patrick Wall, reconhecido neurofisiologista inglês que postulou a inibição central dos estímulos dolorosos - Control Gate Theory -, fez o seguinte comentário ao receber uma condecoração alusiva à contribuição científica de sua teoria:
Este prêmio não deve ser endereçado exclusivamente a mim, mas a todos aqueles que me ajudaram nesta empreitada. De fato, o meu mérito é pequeno. A melhor fórmula para se receber um prêmio como este é a seguinte. Tenha junto de si os melhores e mais criativos alunos. Ensine-lhes a teoria existente sobre alguma coisa e defenda o seu próprio ponto de vista. Depois estimule-os a discordar de si, e lhes de liberdade para pesquisar e provar que estão certos.
Note-se o que o Prof. Wall diz provar que estão certos, não provar que estão errados.
Em resumo, toda a sociedade articula, transmite, seleciona e valoriza hierarquicamente os saberes.

A Escola é o instrumento utilizado pela Sociedade para esta tarefa. Devido à articulação entre a Sociedade e a Escola é compreensível que a Escola se encontre em um permanente estado de crítica.

Grande parte das críticas feitas à Escola pouco têm a ver com a tarefa de transmitir saberes mas podem estar direcionadas para esta representação que a Escola detém da Sociedade. Tais criticismos têm sido constantes desde o período pré-Socrático até os dias de hoje. Portanto, é fundamental distinguir entre as críticas pertinentes à Escola e as críticas pertinentes à Sociedade que são dirigidas à Escola. É preciso diferenciar a Reforma Social da Reforma Escolar.

4. O fracasso da Escola

Muitos reformadores evocam uma palavra mágica para criticar a Escola: o fracasso escolar. A expressão é compreensível, porém, não consegue suprimir as ambigüidades que estão em jogo. Para começar devemos enumerar as variantes principais do termo fracasso escolar .
! Ou se condena a Escola como ela é e se propõem reformas para remediar o fracasso daí decorrente
! Ou se condenam todas as Escolas porque todas conduzem ao fracasso escolar.
Além disso, o termo pode abranger dois significados adicionais:
" Fracasso na Escola como critica ao funcionamento interno da instituição. Significa falar da existência do mau aluno, da freqüência de notas baixas, do número de reprovados etc.
" A Escola Fracassa com crítica ao desempenho externo da instituição. Significa falar da escola que não atende a uma antecipada demanda social. Critica-se a falta de adequação da Escola ao que é externo a ela. Assim, se a Escola visa profissionalisar os seus alunos, a existência de cargos vagos no mercado de trabalho ou desemprego serão utilizados para criticar o desempenho da Escola. Se a Escola visa a transmissão do saber, e poucos alunos passam no vestibular, a Escola será chamada de ineficaz

Em todo o caso, é difícil estabelecer uma referência
válida para se avaliar o desempenho da Escola e nenhuma conclusão pode ser inferida ingenuamente. Uma perspectiva idealizada da Escola conduz a críticas sistemáticas e permanentes. Porém, o que se observa com freqüência é uma postura reformista que esconde o fracasso interno com o intuito de enfatizar o fracasso externo.

Fracassar na Escola não é tão grave como fracassar na vida. O psicanalista Amilcar Lobo, por exemplo, não fracassou como aluno da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro mas acabou fracassando na vida. Devido a sua participação em sessões de tortura durante o período da ditadura militar, ele foi rejeitado pela sociedade brasileira e terminou por ser afastado de sua própria sociedade psicanalítica. A recíproca desta premissa é verdadeira. Alguns indivíduos são bem-sucedidos na vida mas fracassaram na atividade escolar. Ronaldinho, o craque brasileiro de futebol, é um bom exemplo. Não se pode excluir, porém, o que é mais comum. O fracasso na vida social decorrente do fracasso escolar. Nestes casos, é justificável falar em fracasso da Escola. Os sindicalistas concluem, um tanto ingenuamente, que para não haver fracasso na vida não deve haver fracasso na Escola. Para eles, o sucesso na vida é o principal, mesmo que em detrimento da aprendizagem. O fracasso na escola deve ser evitado para estimular o sucesso na vida. Para isso, não deve existir nota nem exame. Na reforma sindicalista, a nota será fruto de uma auto-avaliação. O aluno por si próprio determina se conduziu bem o seu projeto escolar. Instrutor e aluno são companheiros com direitos iguais.

Na perspectiva sindicalista, vários fatores são ignorados.
Entre eles, se o professor sabe mais do que o aluno, se um é adulto e o outro adolescente, se eles têm diferentes funções institucionais e, principalmente, se um é capaz de ensinar e o outro de aprender. Nega-se, além disso, o necessário antagonismo entre professor e aluno. Como veremos a seguir, este antagonismo é um pré-requisito essencial para a produção do saber. Quase sempre, o resultado final da reforma sindicalista é o de transformar a graduação em um ritual de passagem, no qual o conhecimento ocupa um lugar secundário.

Dentro desta perspectiva, professor e aluno devem entrar em acordo sobre um determinado programa de estudos. Suspende-se o perigo do exame que é peça fundamental no processo de avaliação. Além de instrumento de avaliação, o exame é capaz de gerar uma ansiedade produtiva para a aprendizagem e para a solidificação do que foi ensinado. É importante examinar melhor a produção escrita do aluno, seja redação, tese de mestrado, doutorado ou artigo. Aprender implica saber redigir o que está sendo pensado. Até mesmo o acesso ao sistema inconsciente baseia-se na suposição de uma linguagem estruturada. O tirocínio ocorre quando se articulam vários conceitos e se adquire uma compreensão global do assunto. Antever o que pode acontecer em situações hipotéticas deve fazer parte do aprendido. O estilo individual é a maneira peculiar pela qual cada indivíduo desenvolve uma forma própria de raciocínio. Tanto o exercício prático quanto o exame teórico devem ser avaliados em termos de medida. Assim, a finalidade da nota e do exame é dupla. Serve tanto para o aluno como para Escola. Serve para investigar a adequação entre o ensinado e o aprendido. que ponto a Escola produziu algum efeito no aluno e até que ponto o aluno incorporou as mensagens ministradas na Escola. Os efeitos da Escola privados de avaliação manterão os alunos em uma espécie de limbo. Não sabemos se são inocentes (capazes) ou se culpados (incapazes). Não se sabe se devem ir para o céu (aprovação) ou para o inferno (reprovação). Ao evitar-se a dor da reprovação, negam-se, igualmente, os efeitos benéficos e a alegria de ter sido aprovado. A não avaliação só interessa aos temerosos ou aqueles aos quais a ineficácia é percebida como algo eternamente passageiro. A escola sem nota, sem trabalho e sem exame resulta na organização psicótica da Escola. Uma ilha de serenidade em um mundo de erros e falhas. O social, tão defendido pelos sindicalistas, acaba sendo negado. Como não existe mais nota nem exame, não há mais fracasso reconhecível. Este tipo de reforma, na realidade, abole a função da própria Escola na medida em que a supressão do termômetro não abole a febre. Para o aluno, o ganho será nulo. Ao terminar o curso, ele terá acumulado um pouco mais do que havia antes de entrar na Escola. Para os que não podem usufruir outros recursos (sorte, berço de ouro e pistolão), o fracasso na escola será mantido fora da escola. O indivíduo estará condenado a ser o que sempre foi: pobre sem poder e, agora, também sem saber.

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