Saber a Escola - continuação

Uma das formas de contornar estas restrições impostas à transmissão do ensino é, na medida do possível, eleger alunos para cargos representativos, que implicam no gerenciamento institucional. Neste caso, porém, ele passara a ter uma dupla função: representar a Escola e os seus colegas. Em termos do crescimento escolar, talvez, a função mais importante do aluno seja a de tornar-se membro da instituição para continuar a transmissão do ensino. Na condição de professor ou especialista, ele passar a fazer parte da instituição de forma permanente em vez de transitória.

As diferentes configurações que a Escola pode adquirir dependem de fatores raciais, religiosos (escola pública ou católica), geográficos (escola urbana ou rural), tipo de ensino (escola convencional ou piagetiana) e dos diversos níveis de ensino (escola primária, secundária e superior). Tal diversidade irá organizar diferentes tipos de relação professor/aluno. A relação entre o corpo docente e o discente pode facilitar ou prejudicar o funcionamento escolar. Em função de um processo de seleção social e idade escolar, a escola de nível superior é constituída de alunos mais abastados e preparados que contrastam com os da escola primária. Esta seleção, de certa forma, facilita o ensino uma vez que, nas instituições universitárias ou de pós graduação, já houve uma significativa depuração cultural e socioeconômica dos candidatos. No Brasil, as classes menos favorecidas têm poucos representantes na Universidade. A maior parte destes candidatos foi peneirada por uma série de exames prévios que, de certa forma, selecionou aqueles com uma melhor bagagem cultural e recursos financeiros. A escolha da instituição está menos submetida às limitações pessoais. Os que se candidatam a ingressar em cursos de especialização ou sociedades de pós-graduação já possuem um saber reconhecido e, depois da matrícula, encontram-se em um solo fértil para uma aprendizagem adequada. Portanto, é natural que exista uma escalada das dificuldades. Na escola secundária (2 filtro) são maiores as dificuldades na transmissão do ensino em comparação com a universidade (3 filtro). Este processo torna também compreensível o elevado grau de criticismo endereçado ao funcionamento da escola primária (1 filtro), na qual o ensino, em geral, têm um caráter compulsório sem uma rígida definição sociocultural.

3. A transmissão do saber

Saber é um termo amplo e, antes de discutir possíveis críticas e propostas reformadoras da instituição, é necessário conceituar quais são os saberes transmitidos na Escola.
! Informação
! Experiências
! Instrução
! Ensino
! Educação

Informação será utilizada aqui com um significado específico, ou seja, aquele de comunicar como se faz alguma coisa. A informação é responsável por grande parte da produção escrita da Escola e abrange uma enorme variedade de processos explicativos . Estes incluem roteiros dizendo onde se situa a Biblioteca, produções de folhetos descrevendo como funciona um software estatístico e publicações mais detalhada descrevendo em minúcias as várias partes de um doutorado. O que caracteriza este tipo de comunicação são regras, métodos, know-how. Enfim ele descreve a forma do fazer sem interferir com o conteúdo do que será feito. Por exemplo, uma publicação sobre doutorado têm vários capítulos: introdução, metodologia, resultados, discussão e sistema de referência. Tais itens farão parte da grande maioria dos doutorados, mas nada será dito sobre o conteúdo da tese. A informação fala dos caminhos para se chegar ao conhecimento, sem falar do conhecimento em si.

Instrução diz respeito a um tema, assunto ou uma disciplina específica da Escola. Instruir-se em Metapsicologia, Bioquímica ou Física implica aprender um saber específico. Para atingir este objetivo, cada escola define previamente quais os saberes a serem transmitidos e estes irão fazer parte do currículo por intermédio de temas ou cadeiras. Grande parte da eficácia de uma escola baseia-se em sua competência ensinar as diferentes disciplinas que são necessárias para constituir um determinado saber mais geral.

O termo Ensino será empregado para nomear o conjunto da instrução. Quando falamos do Ensino que é oferecido por uma determinada Universidade, não está em discussão uma cadeira especifica ou a qualidade do software de seus computadores. Tal termo diz respeito ao nível de ensino em geral em oposição ao nível informacional e ao nível de instrução propiciado pela Escola.. Um bom nível de ensino diz respeito à eficácia da Escola. Ou seja, ao conjunto dos saberes específicos que são transmitidos. Trata-se, portanto, da variedade da instrução (e.g. plurilogos), da intensidade do aprendido (e.g. profundidade teórica) e da qualidade do transmitido (e.g. prática pedagógica). Um aluno, por exemplo, pode ser mau em matemática, i.e. teve um baixo nível de instrução em matemática. Entretanto, pode ter obtido um alto nível de ensino no sentido de que foi instruído em vários assuntos e adquiriu uma visão geral que lhe permite lidar com uma grande variedade de problemas dentro de sua área de interesse. O ensino em uma Universidade de medicina depende mais da qualidade do saber adquirido a partir das disciplinas básicas (Anatomia, Fisiologia, Bioquímica, Clínica Médica etc.) do que do número de médicos especialistas pertencentes à faculdade.

A experiência se articula e se distingue das categorias anteriores. A informação planeja o saber, mas é só através da experiência no social que o indivíduo integra o processo informacional e o incorpora. A profundidade da experiência está relacionada com a variedade da instrução e com a qualidade do ensino, mas não se reduz a eles. Em geral, diz respeito a uma prática compartilhada que vai desde trabalhos manuais até uma especialização em cirurgia plástica. Em alguns campos do conhecimento, tal como na psicanálise, o conhecimento teórico precisa articular-se com a experiência.

A pedagogia utilizada no ensino, de pouco ou nada vale se o terapeuta permite que seus problemas pessoais interfiram no tratamento do paciente. Por este motivo, e também para experienciar os seus mecanismos inconscientes, o candidato a analista deve procurar tratamento psicanalítico.

Educação diz respeito ao grau de cultura potencialmente capaz de ser adquirido pelo aluno, independentemente de uma aprendizagem específica. Educar é diferente de instruir, compartilhar e ensinar. De fato, contém uma qualidade que falta ao Ensino: a sofisticação cultural. Por exemplo, se esperava que um indivíduo educado durante o Sec XVIII adquirisse um razoável grau de conhecimento em harmonia musical. O aluno educado adquire na Escola outras coisas que nada têm a ver com o cumprimento do currículo ou com a proposta de ensino que lhe é oferecida. Um exemplo é o da educação religiosa. Outro é quando se diz que alguém foi educado em Oxford ou Cambridge. O que quer-se indicar com isto é mais do que a qualidade do ensinado. Aponta-se para padrões éticos, morais e culturais que são estimulados nestes centros de ensino. Alguém pode ser educado em matérias não relacionada ao ensino escolar, como saber comer à mesa, ou conhecer a origem semântica das palavras ou se interessar por curiosidades tais como os hábitos alimentares durante o Império Romano. Freud enfatizava a importância da educação cultural na formação psicanalítica. O psicanalista deveria conhecer o mundo e seus símbolos. Por isto, sugeria aos seus alunos se dedicassem à literatura e que fossem a espetáculos teatrais, óperas, concertos, bales etc. O psicanalista deveria possuir um domínio sobre o significante/significado que fosse além do conhecimento específico da teoria psicanalítica.

E fácil conceber a existência de certos níveis de saber que se transmitiriam em outro lugar que não necessariamente na Escola. O nível educacional sugere uma aprendizagem que extrapola o nível acadêmico. Mas é preciso considerar também aqueles saberes que pouco se transmitiriam se não houvesse escola alguma. Pode-se acreditar que a física pura, a filosofia, a historia, ou a filologia subsistiriam se não houvesse pressão escolar? Um compromisso cultural segundo o qual é honroso para o indivíduo conhecer tais assuntos? Tais saberes que no passado eram transmitidos de forma oral ou por vias institucionais (i.e. conventos) precisam de uma definição por parte da sociedade para serem ensinados. O cidadão deve ser educado e, por isso, deve adquirir conhecimentos que foram convencionados.

Embora a função da Escola seja a de instruir e ensinar, em maior ou menor grau também informa, promove experiências e educa. A explicação de uma reação química (instrução) com freqüência se acompanha de um experimento (experiência), do nome e dados biográficos de seu descobridor (informação) e do contexto histórico-social em que foi descoberta (educação). No final de uma aula sugerem-se as leituras essenciais, explica-se como exercitar o aprendido e, muitas vezes, se faz referência ao currículo e sua relação com outras disciplinas (ensino).

3.1. Saberes autônomos

Existem saberes que dispõem de uma força de transmissão autônoma que é, na maioria dos casos, apenas a paixão daquele que os detém e a quantidade daqueles a quem apaixonam. Nós os dividiremos em:

3.1.1 Saberes populares

Os saberes sobre o chá de ervas para a gripe, o evitar certos alimentos para não passar mal, a relação entre a direção dos ventos e a tranqüilidade do mar, da umidade atmosfera com as dores articulares, da gata que pressente que o frio vai chegar são saberes populares. Eles provém dos mais velhos e de certa forma guardam características ancestrais ao serem comunicados quase exclusivamente por via oral. De certa forma são anti-saberes que, sem modificar muito, adotam novas formas quando as sociedades mudam, são resistentes a questionamentos e, provavelmente, sempre existiram.
Um tipo especial de anti-saber é o saber místico, no qual explicação para fatos cotidianos são oferecidas baseados dogmas, construções míticas ou crenças. A forma como os Etruscos previam vitorias em combates por intermédio da investigação das viceras dos pássaros, o sonho premonitório de Touro Sentado que previu a derrota do General Custer, grande parte das previsões apocalípticas de Nostradamus e a explicação de fenômenos celestes oferecidas por aqueles que acreditam em Discos Voadores, são exemplos de saberes populares em diferentes épocas históricas.

3.1.2 Saberes passageiros

São produzidos a partir de um determinado contexto social mas desaparecem com o passar do tempo. Quando estes saberes estão na moda nada parece opor-lhes resistência. Em geral os saberes passageiros ocasionam uma erudição igual, tanto em rigor como em aridez, a filosofia clássica. A marca registrada é o furor philologicus. Ou seja, o sectarismo lógico a partir de um conjunto postulados. O saber passageiro cria fanáticos, gurus e pessoas de rara sabedoria. A cura de várias enfermidades pela hipnose adotada por Mesmer é um exemplo, assim como o uso da sangria e de insetos para chupar o sangue durante o Sec XVI. O conhecedor é tomado pela rapidez e pelo deslocamento. Seu tempo é o aqui e o agora, pretende romper com todo o conhecimento prévio e, a partir de novidades repetidas, ele se apresenta como detentor de um saber revolucionário. Em muitos provoca a sensação do déjà-vu.

Uma simples constatação seria suficiente para indicar que a Escola não precisa destes saberes e que eles também não precisam da Escola mas, sim, de líderes carismáticos ou gurus. Sua força de convicção provém do fato de serem exteriores à Escola e só se sustentam como forma de resistência ao saber institucional. Se a instituição incorpora tais saberes como cadeiras, ela se enfraquece, mas também atenua o impacto do saber passageiro, retirando-lhes sua força maior que é a de querer-se fora da instituição. Ao fazer parte da Escola, tanto os saberes passageiros como os populares perdem sua legitimidade.

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