Sexualidade Madura, Fidelidade e Perversão- continuação

Nestes casos, não existe possessividade ou ciúmes. A fidelidade se baseia na segurança propiciada pelo encontro e não na insegurança da posse. A possibilidade de relações extra maritais é sentida com fastígio, fadiga ou como algo difícil de ser administrado. Seria difícil encontrar o mesmo prazer com outro parceiro. Assim, relações sexuais com mulheres desconhecidas são antecipadas como complicadas e, talvez, não justifiquem um investimento maior porque a relação amorosa será menos satisfatória (e.g. porque comer hamburgers na rua se tenho um rosbife me esperando em casa).

Infelizmente, porém, a imaturidade matrimonial é a regra. Padrões antagônicos de comportamento são freqüentes e, em termos probabilísticos, se inscrevem no centro de uma curva de distribuição estatística. Na população geral existirão sempre aqueles que estão dispersos nos extremos da curva.. Eles são mais imaturos ou mais maduros e, por serem excepcionais, não se enquadram na média. Fora desta área de distribuição central, correspondente à 50% da população, existirão as caudas estatísticas. Assim, em termos da distribuição do comportamento sexual, existirá uma percentagem menor (25%) constituída por indivíduos excepcionalmente mais maduros e no outro extremo um percentual equivalente (25%) constituído por aqueles que são mais imaturos ou perversos. Talvez seja correto afirmar que todo o imaturo é perverso, porém nem todo perverso é, necessariamente, imaturo. Assim sendo, o lugar da perversão é ambíguo e, em geral, a natureza da perversão não tem uma correspondência direta com a felicidade ou infelicidade conjugal.

As Perversões
Aceito como necessários os nossos postulados sobre a sexualidade adulta e amadurecimento relacional estamos finalmente em condições de propor uma nova perspectiva sobre as perversões. Por oposição aos três princípios, dizemos que um desejo tem características perversas quando o desejo do sujeito é onipotente, quando o direciona para partes dissociadas do corpo e quando não obedece as restrições simbólicas das leis de parentesco. Estas características sugerem uma sexualidade que se situa além do principio do prazer aceito culturalmente.

Na perversão verdadeira, o sujeito, tal como a criança o fazia, usa o outro para o seu prazer libidinal e para manter um sentimento de onipotência. Esta onipotência se expressa em uma indiferença em dar prazer sexual ao outro e tem o sentido de fortalecer um ego reconhecido como precário. O serial killer, por exemplo, adota uma postura de total indiferença ao outro como pessoa e usa o crime sexual para fortalecer o ego. O outro é apenas um corpo que deve servir a um propósito sádico de onipotência (De Lemos, 1994). Portanto, ele não reconhece o Princípio da Alteridade.
Nas perversões, a sexualidade pode ser distribuída ao longo de um continuum. Em um dos extremos deste continuum estão as perversões severas. Nestas o alvo do desejo é predominantemente incestuoso (edipiano). No meio da escala estariam as perversões moderadas que se dirigem ao corpo como objeto parcial (pré-edipiano). No outro extremo do continuum estariam as perversões ligeiras (contra as convenções sociais).

Nas perversões graves o desejo pelo outro não está adequadamente simbolizado. O alvo da pulsão é o objeto edipiano (ou seus substitutos) e não um indivíduo diferenciado. A relação sexual tem um caracter incestuoso e, às vezes, ocorre com o próprio pai ou com a própria mãe. Quando o desejo se mantém mais edipiano do que alteritário, existe uma tendência em negar as proibições impostas pelo incesto. Neste caso, há uma atração sexual por tios, professores, chefes de trabalho e outros representantes da função paterna.

A diferença entre a atração libidinal por parentes e por outros membros da sociedade é de caráter qualitativo e quantitativo. Obviamente, o incesto cometido com o pai biológico é o mais grave. A proibição está sancionada. No amor pelo tio ou primo há uma substituição do pai biológico por um substituto familiar e, por isto, a sanção é menor. Não obstante, o desejo incestuoso é ainda intenso. No amor por figuras representativas da função paterna (e.g. médicos, professores, padres etc.) a realização sexual procura eludir o Édipo. Ela é mais indireta e, talvez, menos intensa. A sanção é mais ética do que legal. Neste caso, a realização incestuosa está mais voltada para as funções desempenhadas pelo pai (e.g. autoridade, liderança, proteção, etc.) do que para o pai como homem (e.g. gênero, parentesco, identidade sexual).

O desejo incestuoso pelo psicanalista ou pelo ex-psicanalista é uma situação especial que merece um exame mais profundo. Obviamente, em função da transferência, o psicanalista representa implicitamente o pai. Assim, sexo entre psicanalista e paciente implica abuso infantil. Este vínculo não é tão explícito com o ex-analista embora ele continue associado à figura do pai por meio dos resíduos deixados pela transferência. Ambos porém representam o pai, tanto como homem como pelos atributos da função paterna.

Alguns psicanalistas argumentam (Brazil, 1996) que a transferência se resolve e, a partir do término do tratamento, não haveria qualquer empecilho para um encontro amoroso entre o ex-analista e o paciente. Tal como não haveria com o ex-dentista e o cliente. Entretanto, esta não é a opinião definitiva de Freud. Ele sugeriu que a transferência dificilmente se revolve, mesmo nos casos em que o paciente obteve alta da análise. Descrevendo a análise de um jovem russo, Freud (1937) diz:

Suas resistências definharam e, nestes últimos meses de tratamento, foi capaz de reproduzir todas as lembranças e descobrir as conexões que pareciam necessárias para compreender sua neurose primitiva e dominar a atual (p 248). Quando me deixou em meados de 1914, acreditei que sua cura fora radical e permanente (p 249). Numa nota em 1923, já comunicara que estava enganado. Quando, retornou à Viena tive que ajudá-lo a dominar uma parte da transferência que não foi resolvida. Algumas dessas crises estavam relacionadas a partes residuais da transferência. Em outras crises, contudo, o material patogênico consistia em fragmentos da história da infância do paciente, que não tinham vindo à luz .(p 249).

A atração pelo ex-analista tem sempre sua origem em uma idealização infantil e deve ser interpretada como um desejo incestuoso e, assim, como perversão. Da mesma maneira que o pai que não morre pelo fato do filho não precisar mais dele, o psicanalista também não morre mesmo quando o paciente não precisa mais de análise. Em um futuro próximo ou remoto, acontecimentos catastróficos e novos problemas emocionais podem induzir ao reinicio da terapia.

As perversões moderadas de cunho pré-edipiano são aquelas usualmente descritas nos livros de psiquiatria. O fetichismo, por exemplo, pode ser interpretado como uma variação desta relação parcial com o objeto. Um exame mais acurado deste fenômeno indica que não é estritamente a atração por uma imagem parcial do corpo que determina o desvio da sexualidade, mas sim sua associação com uma função corporal desempenhada em um determinado estágio do desenvolvimento sexual infantil. É esta associação entre objeto parcial e regressão libidinal (oral ou anal) que induz a uma trajetória sexual distorcida.. Imagem e função se combinam na perversão. Neste nível, algumas destas perversões sexuais se associam a um desejo escopofílico (pênis infantil versus pênis adulto), coprofílico (excreção anal versus excreção genital) ou urofílico (excreção urinária versus excreção de esperma). Estes distúrbios sugerem uma relação na qual funções primitivas do corpo adquiriram relevância sobre a função genital. As variantes acima descritas demostram como a sexualidade infantil podem se inscrever e determinar a identidade sexual do adulto.

Independente destas fixações, é importante ressaltar que os estágios da libido em si (tais como foram descritos por Freud) não tem uma correlação direta com praticas sexuais adultas. Na grande maioria das relações sexuais atuais, partes do corpo do outro são privilegiadas mesmo que o desejo sexual se dirija para um objeto total. Fellatio e a sodomia podem ocorrer durante uma relação genital submetida ao Principio de Castração e ao Principio de Alteridade. Entretanto, sob o ponto de vista freudiano ortodoxo, o sexo oral e anal podem ser mal interpretados como sendo uma regressão à estágios primitivos ou como indicação de uma perversão sexual.

No extremo menos intenso do continuum, estão as praticas sexuais que incluem outras pessoas. Nestes casos, o diagnóstico de perversão depende do contexto sociocultural. Por exemplo, nos países do oriente médio a poligamia não pode ser considerada um desvio psicológico. No mundo ocidental, algumas práticas sexuais incluem a presença eventual de um outro tal como acontece no menage à trois ou na experiência de sexo grupal. Tais relações se distanciam do incesto, aceitam a interdição simbólica e, nelas, a pulsão tem como alvo o social. Situadas no extremo não incestuoso e narcísico da escala, tais práticas devem certamente ser consideradas como menos perversas. Por exemplo, quando a sexualidade de um casal inclui esta dimensão social (i.e. uma relação aberta para mais de um) as características essenciais da perversão severa, tal como foram definidas neste ensaio, não estão presentes.

Tais práticas sexuais se opõem tanto a sexualidade competitiva e ciumenta do Édipo como se distanciam também do modelo de sexualidade avassaladora, possessiva e alucinatória existente na simbiose psicológica (Goldin, 1994). Elas também se afastam de modelos genitais idealizados de completude sexual (i.e. pau fincado e boceta encaixada). O parceiro é sexualmente partilhado ao invés de ser possuído ou fagocitado. Nestas relações não há lugar para a onipotência e para possessividade na medida em que o objeto amoroso é necessariamente compartilhado. O outro não deve existir para mim mas para si mesmo, o que implica, por sua vez, não precisar possuí-lo de forma exclusiva.. O desejo do parceiro é percebido como independente das expectativas usuais da parceira. Ele é respeitado, aceito e gratificado pelo Grande Outro (i.e. a mulher) e não pelo Pequeno Outro (i.e. a esposa).

Nestas perversões ligeiras, o ego dos cônjuges deve ser suficientemente potente para não competir edipianamente com o(s) outro(s) a partir de um sentimento de inferioridade e de insegurança. Por este motivo, está atenuada a rivalidade entre diferentes performances sexuais e não existe a necessidade de monopolizar a libido do parceiro. Independente de todos estes fatores, a realização da sexualidade no social é ainda um tabu e, geralmente, considerada como perversão porque se opõe às convenções sociais vigentes na cultura ocidental. O modelo de relação amorosa judaico-cristão é concebido em termos estritamente monogâmicos. Este modelo afetivo unívoco e possessivo contrasta com o modelo polívoco e poligâmico ainda hoje presentes em outras sociedades (e.g. esquimós, países árabes, tribos da Nova Zelândia, etc.).

Em conclusão, admitindo-se a validade dos postulados sobre uma eventual sexualidade madura, se descortina uma nova perspectiva sobre a perversão.

Dentro desta outra visão, as praticas sexuais perversas poderiam ser classificadas como severas, moderadas e ligeiras. Estas últimas, tipificadas por configurações sexuais poligâmicas, deveriam ser consideradas como perversões leves uma vez que exigiriam maior maturidade. Talvez, no futuro, tais práticas venham a fazer parte da nossa cultura assim como o fizeram na antigüidade greco-romana quando havia plena liberdade para o amadurecimento sexual.

Referências
• Brazil, H (1996) Comunicação pessoal, Rio de Janeiro.
• De Lemos, AI (1996) Identification with the aggressor In: Serial Killers & Poets, in preparation, New York.
• Freud, S (1905) Tres ensaios sobre a teoria da sexualidade In:Edição Standard Brasileira, Imago Editora, Rio de Janeiro, 1975, Vol 7..
• Freud, S (1937) Análise terminável e interminável In: Edição Standard Brasileira, Imago Ediora, Rio de Janeiro, 1975;Vol 13:247-87.
• Goldin, A (1991) O reencontro apaixonado In: Amores Freudianos, Ed Nova Fronteira, Rio de Janeiro.
• Katz, CS et al. (1979) Psicanálise: ciência, poder e desejo In: Psicanálise, Poder e Desejo, Katz Ed, Coleção Ibrapsi, 1979.
• Kahn, MMR (1989) Alienation in perversions In: Marefields Library, Karnac Eds, The Hogart Press Ltd, Karnac Books, London: 180-181.
• Lacan, J (1960) Le desir et son interprétation Bulletin de Psychologie, Paris, 12(5).
• Lacan, J (1971) La cosa freudiana: o sentido do retorno a Freud en psicoanalisis In: Escritos I, Siglo XXI Ed, Mexico.
• Stringhini, V (1998) Comunicação pessoal, Porto Alegre.
• Spitz, R (1961) El estagio pre objetal In: El primer ano de vida del Nino, Aguilar Eds, Madrid.